quinta-feira, 28 de julho de 2011

Bach e o Alaúde

Bach e o alaúde
                                                                      
Quando falamos de música barroca nos vem logo em mente um sujeito que foi sem dúvida um grande e inquieto compositor. Johann Sebastian Bach, que hoje é estudado por vários músicos em todo o mundo, é lembrado por composições como os Concertos de Brandenburgo, O cravo bem temperado ou então pela sua Fantasia cromática que é uma das mais importantes obras para cravo. Porém, além dos violonistas e alaudistas de hoje, pouca gente fala sobre as suas composições para o alaúde, repertório quase que obrigatório de muitos e renomados violonistas. Para entender melhor esse repertório, é necessário comentar sobre alguns dos aspectos característicos desse instrumento e um pouco da sua história.
O alaúde foi um dos principais instrumentos de acompanhamento do canto, mas não tinha só essa função. Era, sobretudo, um instrumento solista que durante os séculos XV e XVI foi muito popular entre a burguesia e a nobreza européia. A maneira como era tocado copiou-se dos árabes¹ que consistia em usar um plectro para tanger as cordas². Porém, durante o século XV, o uso do plectro foi abandonado e substituído pelo toque beliscado da mão direita. Com essa troca abriu-se um leque de possibilidades técnicas para o instrumento e, em conseqüência disso, uma maior condição harmônica e contrapontística ocasionada pela maior combinação de dedilhados entre mão direita e mão esquerda. “essa troca tão significativa para o desenvolvimento do alaúde europeu, possibilitou acordes e polifonia acompanhando as tendências composicionais da época.” (BARROS p.4).
O alaúde possuía uma característica que o diferenciava dos outros instrumentos. Referente à sua escrita e ao modo como os músicos executavam, havia uma maneira muito particular. Essa maneira, ou melhor, essa categoria de escrita da época, era denominada de tablatura.     
           Essa escrita consistia em mostrar uma determinada quantidade de linhas que representavam as cordas do alaúde. A sua ordem era estabelecida de baixo para cima, ou seja, a primeira linha de baixo para cima representaria a primeira corda do instrumento, a segunda linha representaria a segunda corda e assim por diante. Em cada linha havia uma indicação com números que faziam referência em qual casa deveria ser posicionado o dedo da mão esquerda no braço do instrumento, e em cima de cada indicação era escrito o ritmo que deveria ser executado.
Foi no Renascimento que o alaúde foi afirmado como um instrumento solista através de compositores como John Dowland, que foi o principal responsável pela a enorme profusão da prática do instrumento na Inglaterra no século XVI. Porém, o alaúde não era o único instrumento de cordas beliscadas do período renascentista, havia também a viola de mão, que foi também muito difundida no período.  
A partir do século XVII, houve na Alemanha uma enorme movimentação em torno do alaúde, ocasionada pelos compositores Adam Falkenhage, David Kelher, Johann Afolf Hasse, Wolff Jacob Lauffensteiner, Ferdinand Hintorleithner e o famoso Silvius Leopold Weiss, que era considerado por muitos como o maior alaudista da época. Estes compositores foram os responsáveis pelo desenvolvimento técnico e estilístico do período.
Bach manteve contato com Weiss e com os outros alaudistas da época e foi através dessa relação que ele compôs ao menos sete obras para o instrumento, já incluindo as suas quatro suítes. O local em que Bach compôs uma boa parte de suas obras alaudísticas é Leipizig, onde ele possuía o cargo de diretor musical e de chantre da escola de Santo Tomás, com uma enorme quantidade de atividades e deveres.
  ...que ilumine os alunos em uma vida e conduta dignas com o meu bom exemplo; que atenda a escola com zelo e instrua os jovens fielmente... que leve a música nas igrejas desta cidade,com um bom plano segundo as minhas possibilidades...que preste a devida obediência aos senhores inspetores e diretores da escola. 05 de Maio de 1723.  (EPSTEIN,p.35)
        
De fato se sabe que Bach não era um alaudista, e que ele compunha suas respectivas obras tocando o cravo, o que nos leva a observar que o modo de compor, usando o sistema de notação por tablaturas não foi adotado pelo compositor. Até então essa era uma prática dos compositores de obras para instrumentos de cordas beliscadas e Bach pode ser considerado um dos primeiros, se não o primeiro compositor – referente a esse tipo de instrumento – a escrever sem usar o sistema de tablaturas. Todavia, com essa nova maneira de escrever surge o conflito entre características organológicas distintas entre o cravo e o alaúde, levando a mudanças posteriores para uma adaptação mais coerente e, é claro, diminuindo as possíveis dificuldades que os músicos iriam encontrar ao tocar as suas obras.    
J. S. Bach compôs, como já foi dito, um todo de quatro suítes para alaúde. A primeira delas é a suíte BWV 995, que é uma adaptação da versão em dó menor da suíte para violoncelo (BWV 1011), que passa a ser em sol menor para o novo instrumento. Esta obra foi encontrada – assim como as outras suítes – com o autografo de Bach, portanto, não se trata de uma adaptação feita por outro compositor e sim pelo próprio.
A suíte BWV 996 foi encontrada em três fontes, sendo que uma é um manuscrito de Gottfried Walther que era primo de Bach, a segunda – que é considerada a principal – é uma coleção do seu discípulo Johann Ludwig, e a última é um manuscrito de Heinrich Nicolaus Gerber. Sobre esta, não se trata de uma adaptação de alguma obra para outro instrumento, então sendo a única suíte que foi composta exclusivamente para o alaúde, diferente da BWV 997 que possui também outras cinco versões para teclado, mas todas sem o autógrafo de Bach. Tratam-se, assim, de versões escritas por outros compositores. Johann Friederich Agricola foi um dos copistas da BWV 997, assim como Johann Christian Weyranch. Existem também cópias anônimas como a que está em Berlim (1738 – 41).
A Suíte BWV 1006 é uma versão da Partita III (BWV 1006) para violino solo. Há poucas alterações na versão alaudística, pois permanece na tonalidade de mi maior.
Além destas quatro suítes, J. S Bach também deixou para o alaúde mais três importantes obras como o Prelúdio BWV 999, uma pequena peça encontrada em uma única fonte, a de Johann Peter Kelher intitulada “prelúdio em dó maior”, que hoje se encontra em Berlim. Uma sonata em mi bemol maior que Bach indica o cravo e o alaúde como instrumentos possíveis para tocá-la, e consiste em um prelúdio seguido de uma fuga finalizando com um allegro, e a Fuga BWV 1000 que se trata de uma transcrição da primeira das sonatas para violino solo (BWV 1001).
Bach não utilizou o alaúde somente como um instrumento solista e o utilizou também como instrumento acompanhador em diversas obras.
 Na música fúnebre de Bach para a rainha Christina Eberhandrina (BWV 198) escrita em 1729, foram usados alaúdes. Com sons cavernosos, eles descrevem no recitativo nº 4, o dobrar de sinos afinados. Em outros números da obra, os alaúdes reforçam o baixo e atuam como instrumentos de preenchimento do continuo. O Arioso nº31 da paixão segundo São João (BWV 245) confia o acompanhamento de um solo vocal a duas viole d’amore, um alaúde e continuo. (GEIRING, 1985, p.303)              
Apesar de Bach ter usado o alaúde como um instrumento acompanhador, são as suas obras solos que prevalecem no repertório de muitos violonistas atuais e foram muito trabalhadas por violonistas do século XIX, como Francisco Tárrega, um dos primeiros a fazer transcrições das peças de Bach para o violão moderno.
Sem dúvida, Tárrega enfrentou muitos problemas nesse processo de adaptação para o violão, pelo fato de o mesmo se preocupar em escolher outras tonalidades e adaptar as obras à afinação do violão para um melhor aproveitamento timbrístico e, é claro, para um maior conforto na hora da execução. Além disso, ele precisava manter o mesmo caráter da composição original, caso contrário, a transcrição não valeria tanto à pena.
Como podemos notar, por trás das obras alaudísticas de Bach existe um grande processo de adaptações e reformulações, que foram freqüentes desde a época do compositor até o século XIX e, no século XX, foi uma grande fonte para que os violonistas pudessem trabalhar os aspectos técnicos e principalmente os estilísticos, sendo estas bastante presentes até os dias de hoje nas universidades, onde tais obras fazem parte de processo de amadurecimento musical dos estudantes.     
               
Benjamin Prestes/ Emerson Marcelo           
           
           
Notas.
¹   Foram os que deram origem ao instrumento.
²  As cordas do alaúde eram dispostas em ordens, cada ordem com duas cordas com a mesma afinação. Portanto se o alaúde possuísse seis ordens ele teria na verdade doze cordas.     
 
Bibliografia.
BARROS,Souza Nicolas de. A adaptação da obra alaudística de Johann Sebastian Bach para Alt-guitar: Um modelo Híbrido. Dissertação de mestrado defendida na UFRJ em 1993.
DUDEQUE, Norton. História do violão. Curitiba, editora da UFPR,1994.
EPSTEIN, Ernesto. Bach, pequena antologia Biográfica. Buenos Aires: Recodi Americana.
GEIRINGER, Karl. Johann Sebastian Bach. RJ: Jorge Zahar. Ed, 1985.
GROUT, Donald Jay, PALISCA, Claude. História da música ocidental. Lisboa, Gradiva, 2007, 5º edição.
KOONCE, Frank. The solo Lute works of Johann Sebastian Bach. California: Kjos Neil A. Kjos music company, 1989.

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