quinta-feira, 28 de julho de 2011

Notação Musical: Origem e Desenvolvimento I

O desenvolvimento da notação musical ocorreu inicialmente através da música vocal, e o meio de transmissão das canções era exclusivamente oral. Como é possível imaginar, esse método não era muito eficiente, e ao se transmitir de indivíduo para indivíduo muito se perdia. Não se pode negar a importância da religiosidade entre os povos nesse processo. Por exemplo, o surgimento do cristianismo, que levou à prática de reunião entre os fiéis e a adoração coletiva através de cantos, fazendo-se assim necessário que algo auxiliasse a memória dos cantores. A princípio, na Igreja Cristã, cantava-se apenas em uníssono, mas com o acréscimo de vozes secundárias, a importância de representar o que se cantava era iminente. Assim foi no decorrer de toda a história da música: à medida que aumentava a complexidade das obras, mais necessidade havia de aperfeiçoar os sistemas de notação. Pode-se dizer que todo o conhecimento teórico e prático de contraponto, harmonia e rítmica andou junto com o desenvolvimento da notação musical até chegar ao que hoje conhecemos.
Durante a Antiguidade foi desenvolvida uma notação que baseava-se nas letras do alfabeto para simbolizar as notas, que era chamada notação literal. Primeiramente foi utilizada em grego e posteriormente em latim. No século IV já havia cerca de 1600 símbolos e formas de letras usadas para esse tipo de representação e os gregos desenvolveram pelo menos quatro sistemas baseados em letras. Esta notação tinha uma finalidade didática mas logo veio a ser substituído pela notação neumática.
Não há uma referência literária documentando a invenção dos neumas. A palavra neuma vem da palavra grega pneuma, e se refere a um trecho melódico que pode ser cantado num fôlego, mas hoje refere-se apenas ao sinal gráfico que representa um contorno melódico. Alguns estudiosos especulam que eles surgiram dos acentos gráficos (agudo, circunflexo, etc.). Outros, que são representações de gestos que mestres de coro faziam com as mãos para indicar as subidas e descidas da linha melódica. Acredita-se também que podem ter surgido de um sistema franco de pontuação desenvolvido no final do século VIII, o qual torna o texto mais fácil de ser compreendido através de suas inflexões vocais. Essas explicações dão a entender que os neumas surgiram a partir de uma notação anterior.
Existiam basicamente dois tipos de neumas: os oratóricos e os diastemáticos. Os neumas oratóricos eram escritos sem pauta, serviam apenas para lembrar os cantores o caminho da melodia, e não davam noção de altura. Os neumas diastemáticos tinham a altura cuidadosamente medida em relação a uma linha imaginária que representava um som específico. A partir do final do século X, foi utilizada uma única linha horizontal de cor vermelha acima dos textos representando uma nota (fá). Depois foi acrescentada outra linha de cor amarela ou verde que representava a nota dó. Uma terceira linha de cor preta somou-se entre as duas anteriores. No século XII, Guido d’Arezzo[1] sistematizou a quarta linha, também de cor preta, que ficava ora acima da linha dó, ora abaixo da linha fá, dependendo da tessitura da melodia.
Dois acentos gramaticais, o agudo (acutus) e o grave (gravis), indicavam a subida e a descida da voz, respectivamente. Eles também podiam ser combinados para representar as inflexões vocais. Estes dois símbolos se tornaram as figuras básicas da notação neumática. O acutus manteve a sua forma original, e foi denominado virga; o gravis recebeu a forma de ponto, e foi denominado punctus. Desde o final do século IX, o punctus e a virga permaneceram como os símbolos das notas não-ligadas, e todos os outros neumas eram combinações desses dois sinais ligados.
            A partir do século XI, os compositores foram desenvolvendo uma notação para o ritmo baseado num princípio fundamentalmente diferente do da nossa notação: ao invés de apresentar durações fixas por meio de símbolos diferentes, indicava padrões rítmicos através de combinações e grupos de notas que, em meados do século XIII, foram codificados em uma série de seis modos rítmicos, mostrados a seguir:
Na prática, a utilização desses modos rítmicos era mais flexível e poderia ter interpretações não tão rigorosas como em teoria. No entanto, essa representação tornou-se limitada; com o aparecimento de formas musicais mais eleboradas como o motete, outras necessidades precisavam ser saciadas. A notação mensurável foi feita sob medida para as necessidades dos motetes. Supria também as carências rítmicas que tinham os organa[2] de Notre Dame especificando os valores rítmicos das figuras musicais. A invenção desta notação mensurável diminuiu bastante a dependência da oralidade. Tomou-se como base as figuras que representavam a longa e a breve, que são a virga (  ) e o punctum (  ), respectivamente. Agora estas notas individuais tinham valores rítmicos intrínsecos, e não haviam mais notas soltas como nos organa, não era mais necessário alinhar as vozes na partitura, tornando possível que as vozes do motete estivessem separadas, economizando espaço. A mais rica descrição sobre notação mensurável é encontrada no tratado Ars cantus mensurabilis (A arte da musica mensurável), de Franco de Colônia[3], cujo nome foi dado à notação que descreveu. A virga representava a longa, que poderia ser perfeita (três tempora), ou imperfeita (dois tempora). O punctum representava a breve, que podia ser normal de um tempus (brevis recta) ou alterada de dois tempora (brevis altera).
O começo do século XIV na história da música foi marcado pela ars nova, na qual houve grande aprimoramento, tanto nas práticas compositivas quanto na notação musical. No começo deste período, houve a modificação de vários símbolos gráficos e o acréscimo de novos, o que resultou em um recurso extremamente flexível para os compositores.
Essencialmente duas formas de notação envolveram os princípios básicos da ars nova: a italiana, mas esta durou pouco tempo e não teve tanta importância no desenvolvimento da notação, e a francesa, que consistia numa extensão dos princípios franconianos. A introdução de valores de notas menores e claramente definidas no espectro notacional fez com que valores de notas mais curtos assumissem a função de unidade de medida. Na notação franconiana, a breve tornou-se unidade de medida com o aparecimento da semibreve, e na ars nova, a semibreve, com o aparecimento da mínima. Valores de tempo foram mais precisamente empregados, e várias combinações envolvendo valores temporais e padrões métricos começaram a aparecer. A Phillipe de Vitry é dado o mérito de ter identificado as quatro prolações: divisão da breve em duas ou três semibreves (tempus), e a divisão da semibreve em duas ou três mínimas (prolatio), como no exemplo seguinte.
Nesse período também foi alcançada a sincopa usando um ponto após a nota, aumentando metade de seu valor, e usando a nota vermelha, a qual diminuía o valor da nota a dois terços de sua duração original, como no exemplo seguinte.
Como citado, no séc.XIII os neumas assumem valores de tempo, a virga passa a ser chamada longa e ao punctum chamou-se breve, e no final do mesmo século surge outro símbolo chamado semibreve. No séc. XIV já haviam cinco símbolos de valores de notas, acrescentou-se a máxima e a mínima.E já no séc. XV surgem valores ainda menores: a semínima, a fusa e a semifusa. A essas notas dava-se coloração diferente e podiam ser brancas com contorno ou pretas, dependendo do que se queria representar. Simultaneamente a este processo de desenvolvimento de símbolos também criou-se um meio para representar pausas. Na notação neumática antiga, as pausas eram representadas por pequenas barras horizontais acima das linhas em uso, depois vieram a ser representadas por linhas verticais que atravessavam o tetragama e quanto maior o valor do silêncio maior era o comprimento da linha. Apenas mais tarde, tornou-se necessária a utilização de outros símbolos devido ao acréscimo da barra de compasso.
Hoje temos muita variedade de música e estilos. Logo, a variedade de símbolos representativos é imensa e atende a quase todas as necessidades de representação. Assim como séculos atrás existiam peças que dependiam da performance do intérprete, o mesmo pode ocorrer hoje. No entanto, a representatividade do discurso musical é mais facilmente estabelecida. Pode-se concluir que todo o processo de desenvolvimento da notação musical dependeu e ainda depende das mudanças e inovações que ocorrem ao longo do tempo, ou seja, este processo é intimamente ligado com as necessidades musicais que se amplificam no decorrer da história.

Andrey Bacovis
Diana Pessoa


[1] Guido d’Arezzo: Guido d’Arezzo (séc XI) foi o principal teórico musical de sua época. A ele deve-se o sistema de hexacorde, solmização, a mão guidoniana e progressos no desenvolvimento da notação musical. Esses tópicos não foram necessariamente criados por ele mas foi ele quem os aperfeiçoou e teorizou com finalidades práticas. Com respeito a notação musical, um importante passo dado foi a introdução da quarta linha no sistema de linhas horizontais onde eram colocados os neumas e que mais tarde deram origem ao nosso pentagrama moderno.
[2] Organum: (pl. organa) É a forma polifônica mais antiga que se tem registro, datada do século IX. O organum primitivo consistia em duplicar a voz principal em intervalos de quinta ou quarta abaixo usando a voz organal, podendo qualquer uma delas ser duplicada em oitava. Vários passos importantes foram dados no sentido da independência vocal, até chegar ao organum melismático, onde a voz principal passou a ser chamada de tenor, e a voz organal cantava uma melodia melismática mais aguda.
[3] Franco de Colônia: Foi um teórico que viveu durante o século XIII. Escreveu o tratado ars cantus mensurabilis, no qual propôs um sistema de notação rítmica que permaneceu em uso durante dois séculos. Seu trabalho está intimamente ligado à musica polifônica desenvolvida em Paris no respectivo século.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALALEONA, Domingos. História da Música – Desde a Antiguidade até os nossos dias. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1984. pp 65-69.
BORDINI, Ricardo Mazzini. Notação Musical, Parte I – Breve História da notação Musical. Universidade Federal da Bahia. Disponível em: <http://www.clem.ufba.br/bordini/not_mus.html> Acesso em 26 de maio de 2011.GROUT, Donald J; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. 5ª. Ed. Lisboa: Gadiva Publicações, 2007.
HOPPIN, Richard H. La Musica Medieval – El canto gregoriano: Características generales. 2a. Edição. Madrid: Akal Musica. Pp. 71-78
PARRISH, Carl. The notation of Medieval music. Pendragon Press, New York, 1978, pp 4-11.
PALISCA, Claude V. Norton Anthology of Western Music. ed. New York, London: W.W. Norton & Co.,1988. V1.
RANDEL, Don Michael. The Harvard concise dictionary of music and musicians. Harvard University Press, Cambridge, 1999.
TARUSKIN, Richard. Music from the earliest notations to the sixteenth century. Oxford University Press, New York, 2005.
ULTAN, Lloyd. Music theory: problems and practices in the middle ages and renaissance. University of Minnesota Press, Minneapolis, 1977, pp 61-74.




2 comentários:

Por Dentro da Bola disse...

Muito interessante esse texto falando a respeito da notação. Combinou com o que eu estava desejando fazer. Criei um blog recentemente e meu primeiro artigo foi sobre notação. Então coloquei o seu link la como uma forma de compartilhar também. Vou deixar meu link aqui também para o caso de você dar uma passada la e quiser sugerir alguma coisa.

http://musitavola.blogspot.com/

Zenir disse...

Nossa! Quanta coisa ,que a gente não sabia ! Agora muito bom sim ,esta resenha . Adoraria poder ter um professor para tirar dúvidas.