As constantes mudanças ocorridas na Europa dos séculos anteriores ao XVIII provocaram profundas alterações nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais que culminaram em rupturas as mais significativas possíveis, com destaque no campo ideológico.
Vê-se, nesse momento, uma heterogeneidade de reis que governavam em outras regiões que não a sua de origem. Casamentos arranjados que propunham alianças a fim de manter viva uma tradição a um preço muito alto, inclusive, com a bênção da Igreja. (GROUT e PALISCA, 2007, p. 477)
Um desconforto social assolava a Europa de então. O próprio Homem desse momento encontrava-se ainda muito dividido – resquícios do Barroco – entre a razão e a emoção, querendo emancipar-se, ser autor e protagonista de suas ações.
É nesse meio conturbado, de incertezas e desesperanças que filósofos passam a questionar a “ordem” social, os mandos e desmandos dos reis, a política unilateral, a falta de acesso ao conhecimento, seguidos por uma burguesia emergente que, aos poucos, vai descentralizando o poder régio-eclesiástico.
A essa tomada de posição, com ideias esclarecedoras e questionamento sobre a posição que o Homem deveria ocupar no processo social, como agente de mudanças e não uma mera peça no tabuleiro da vida, deu-se o nome de Iluminismo.
Foi a partir desse momento, a “era das luzes”, que os caminhos da vida europeia tomaram novos rumos.
Fatos como a morte de Jean Baptiste Lully (1632-1687), que até então detinha o poder de chancela sobre toda a produção musical na França, a volta da corte para Paris, vinda de Versalhes, após a morte de Luís XIV e a pressão sofrida pela Corte por parte da Burguesia, bem como os ideais iluministas e humanitários acabaram por marcar o início de uma época que, se não foi a mais revolucionária, foi a que mais investiu no potencial humanístico.
No início do século XVIII, a burguesia, querendo as mesmas honrarias e privilégios da corte, macaqueava aquela vida. Ao passo que, cansada da vida oficial que levava, a Corte passou a imitar a Burguesia, expondo a sua insatisfação, principalmente após a morte de Luís XIV. A Burguesia acabou atraindo para dentro de si a Corte que, enfraquecida, passou-lhe a compartilhar dos mesmos hábitos, pois estava saindo de um ambiente de convenções, em Versalhes, para uma vida menos oficial, visto que no final do século XVII, essa mesma Corte passou a comungar do pensamento dos filósofos chamados Iluministas.
Um dos postulados dessa nova mentalidade que se instalava na Europa do século XVIII, apesar de contrária à Igreja e às monarquias, era acreditar que somente a verdadeira educação intelectual poderia libertar o ser humano, emancipando-o. E para que esse conhecimento fosse disseminado por toda a Europa, os Iluministas ou Enciclopedistas – como eram chamados – resolveram publicá-lo. Uma grande enciclopédia foi o meio usado para isso, influenciados por Voltaire e Diderot – é claro que sem o consentimento monárquico e eclesiástico. O dicionário também data dessa época.
Com isso, pessoas de todas as classes passariam a ter acesso à Cultura e à Educação pois, para a emancipação do homem, não era preciso a sua submissão à Igreja.
Rousseau foi um dos principais apóstolos do pensamento iluminista, que tomou corpo a partir de 1760, influenciando profundamente poetas-filósofos (GROUT e PALISCA, 2007, p. 476). Ele dizia que o ser humano esquecera a felicidade devido aos tantos obstáculos que enfrentava diariamente. Outra afirmação sua era a de que muito pouco era preciso para alcançar a felicidade e não como apregoava a sociedade capitalista: é necessário consumir produtos para ser feliz. Isso girava em torno de uma acomodação social.
Havia uma necessidade latente no homem do século XVIII de voltar ao ambiente primitivo, isto é, o desejo de resgatar a felicidade primeira, longe das imposições capitalistas, convencionalmente estabelecidas. A música, a dança, a pintura, portanto, realizavam essa necessidade mais subjetiva.
Os iluministas questionavam essa sociedade de aparências e, por conta disso, os monarcas dessa época tornaram-se déspotas esclarecidos. Em outras palavras, para não perderem o controle nem o poder, passaram a tratar rigorosamente os iluministas, que passaram, entre tantas coisas, a discutir a emancipação do homem.
Nas artes visuais, Watteau pintou o quadro O Embarque para Citera – 1717, numa tentativa de exprimir o que realmente a sociedade setecentista queria: o retorno ao primitivismo, navegando para um lugar de descanso, onde há árvores, pastos, em busca da felicidade dada pela natureza.
Para a realização mais imediata dessa necessidade, há que se entender que novos meios foram surgindo. Na música, por exemplo, o abandono do contraponto foi marcante nesse momento, visto que era considerado algo sofisticado, portanto, desnecessário.
O contraponto foi considerado uma espécie de artefato medieval, embora se saiba que sua prática ainda perdurou por todo o século XVIII, ainda que de forma acanhada. Era preciso, pois, uma comunicabilidade mais prática, mais direta com o público, em que as pessoas entendessem a música mesmo que não a tivessem que estudar aprofundadamente. Critério, aliás, básico à música contrapontística. (GROUT e PALISCA, 2007, p. 479, 480)
Não se pode negar que a melodia dessa época passou a ser mais elaborada. Contudo, a harmonia passou a ser mais estática.
Ainda que a terminologia para esse período (1720 a 1780) seja discutível, Rococó, Pré-classicismo ou Estilo Galante, é possível apontar algumas características bastante cultivadas na esfera musical:
a) abandono do contraponto
b) harmonia estática
c) melodia bem desenvolvida
d) fragmentação rítmica
e) aparecimento de fórmulas / esquemas
Até o final do século XVII, a ópera italiana disseminou-se por toda a Europa. Na virada do século e com as profundas mudanças que vinham acontecendo em todas as esferas, este gênero saiu de um círculo muito restrito, da alta sociedade, e passou a satisfazer outro público, até porque com o emergente crescimento do comércio no sul da Itália, Nápoles foi a cidade que mais se desenvolveu e onde foram construídos muitos teatros para apresentações variadas. Destaca-se o Teatro dei Fiorentini, com peças em dialeto toscano.
Os gêneros Drama e Comédia só passaram a ser tratados separadamente no século XVIII. Os precursores dessa separação foram Pietro Metastásio (1698-1782) e Apóstolo Zeno (1669-1750). Aquele foi o que mais abraçou a ópera séria cujos compositores baseavam suas obras em histórias de antigos reis ou em deuses da mitologia. Os enredos proporcionavam cenas espetaculares e passaram a dar destaque ao canto. Por isso os cantores se preocuparam em dedicar-se mais a esta arte e enfatizar a qualidade técnica e o timbre de sua voz. A maior característica dessa ópera era a ária da capo (do início): constava de três partes, sendo a terceira uma repetição da primeira. Nesta hora os solistas tinham oportunidade de acrescentar passagens ornamentadas.
Para os italianos, a comédia tinha um sentido mais próximo do cotidiano. Seus personagens eram pessoas simples, comuns; os assuntos de que tratavam eram tipicamente simplórios, diferentes da ópera séria.
Durante as apresentações das óperas, houve a necessidade de incluir, entre um ato e outro, uma pequena peça, de assunto cômico, chamado intermezzo, o qual era encenado em tempo mais curto, em língua vernacular e que atraía a atenção de um grande público em teatros menores.
Giovani Batista Pergolesi (1710 – 1736), um jovem de 23 anos, escreveu um intermezzo La serva padrona. O tema não era novo, contudo alcançou notoriedade. Era uma espécie de entretenimento, colocado no intervalo de um ato a outro da ópera para segurar o público. Esse tipo de composição era formado geralmente de 2 a 3 personagens. (CANDÉ, 2001, p. 572)
Com o declínio da ópera séria, o intermezzo encontrou, nesse momento, um ponto de apoio e um motivo para se consagrar ainda mais. A produção era menor, os custos também; o tempo de execução era menor: um ato apenas.
La serva padrona (1733) marcou de tal forma aquele momento que passou a ser apresentada em várias versões. Pela impressão humorística que causava no público, esse gênero foi-se notabilizando de tal forma que compositores de gerações posteriores alcançaram projeção com composições de intermezzi, baseados em La serva padrona de Pergolesi.
A ópera séria, com seu declínio, foi aos poucos dando espaço a esse novo gênero que se consagrou como ópera bufa, termo usado para descrever a versão italiana da ópera-cômica, ou ainda dramma bernesco, dramma comico, divertimento giocoso, commedia per musica, dramma giocoso, commedia lirica.
Para que o intermezzo passasse à categoria de ópera, o processo não foi instantâneo. Além do já mencionado declínio da ópera séria, o surgimento de vários pequenos teatros, a expansão desse gênero que atraia bastante gente – pois houve uma busca muito grande por este gênero e não por aquele – são fatores relevantes.
Outro ponto determinante para a fixação da ópera bufa está relacionado diretamente a Carlos Goldoni (1707-1793 - Veneza), advogado, de família abastada, o qual revê os conceitos da Commedia dell’arte (século XVI), gênero que era marcado pelo improviso e que renasceu com força no século XVIII, ao qual se deu o nome de Drama Giocoso e que muitos deles foram escritos pelo próprio Goldoni.
Esse drama era muito baseado na Commedia dell’arte. Seus personagens eram nobres e plebeus. Tal gênero passou a ser tão difundido que Baldassare Galoppi (1706-1785) escreveu aproximadamente 12 óperas nesse estilo, baseado em Goldoni. Entre 1740 e 1750, metade desses trabalhos já haviam percorrido toda a Europa. Tal fato lhe deu prestígio e rentabilidade de modo que muitos compositores se convencerem de que aquele era o gênero do momento, fazendo desse estilo não apenas um gênero, mas sobretudo um meio de vida, tornando-o ainda mais solidificado e mantendo-o vivo ao lado da ópera séria.
Sabe-se que às representações das óperas bufas usavam-se cenários do cotidiano, dialetos locais e uma escrita vocal simples, baseada mais na dicção clara e rápida (CANDÉ, 2001, p. 463). Mas logo cantores virtuosos passaram a ser requisitados e a complexidade da escrita cresceu, aumentando também o número de atos depois de libertar-se de seu papel coadjuvante em relação à grande ópera séria.
Algumas das mais conhecidas e importantes óperas bufas, além de La serva padrona de Pergolesi, são Il matrimonio segreto de Domenico Cimarosa, Così fan tutte e Le nozze di Figaro de Mozart, Il barbiere di Siviglia e La Cenerentola de Gioacchino Rossini e Don Pasquale e L'elisir d'amore de Gaetano Donizetti. Além de Pergolesi e Galoppi merecem destaque Nicola Logroscino (1698-c.1765) e Niccolò Piccinni (1728-1800) que também cultivaram esse gênero.
Para os italianos, a ópera séria e o local – o teatro – tinham caráter educativo, moralizante, civilizatório. E o que dizer da ópera bufa?
A esse respeito, é bom tomar por base os ideais humanitários subjacentes a todos esses acontecimentos. Dessa forma, embora preparada para tirar do público muitas gargalhadas, essa ópera também, por vezes, trazia à reflexão determinados assuntos ainda que por outros meios. Neste caso, ela também estava engajada com os ideais iluministas.
Em outras palavras, as situações de que tratavam eram engraçadas porque a vida também o era. E se o assunto, embora cômico, refletisse o lado trágico, era possível a compreensão, pois assim era vida napolitana, um conjugado de coisas boas e ruins, sem separação. E se os personagens da vida comum assumissem o papel de protagonistas – fato totalmente inovador – era um reflexo iluminista, apregoando que o Homem não precisaria de um título para ser importante ou para ser feliz.
Aqui, está o intermezzo, com toda a estrutura,
ANEXO 1
Estrutura da ópera de Pergolesi La serva padrona (1733), com edição de Damián H. Zanette.
· Intermezzo Primo
1. Aria (Uberto): Aspettare e non venire
2. Recitative (Uberto, Serpina): Questa è per me disgrazia
3. Aria (Uberto): Sempre in contrasti
4. Recitative (Serpina, Uberto) Insomma delle somme
5. Aria (Serpina): Stizzoso, mio stizzoso
6. Recitative (Uberto, Serpina): Benissimo. Hai tu inteso?
7. Duetto (Serpina & Uberto): Lo conosco a quegl' occhietti
· Intermezzo Secondo
1. Recitative (Serpina, Uberto): Or che fatto ti sei
2. Aria (Serpina): A Serpina penserete
3. Recitative (Uberto, Serpina): Ah! Quanto mi sta male
4. Accompanied recitative (Uberto): Per altro io penserei
5. Aria (Uberto): Son imbrogliato io già
6. Recitative (Serpina, Uberto): Favorisca, signor
7. Duetto (Serpina, Uberto): Per te io ho nel core
ANEXO 2
Recitativo Ah! Quanto mi sta male dos personagens Uberto e Serpina, com o comentário de GROUT e PALISCA, 2007, p.502.
Esta cena, que começa com um diálogo entre Uberto e sua criada Serpina, a que se segue um monólogo de Uberto, revela a extraordinária capacidade da música de Pergolesi para projetar o impacto dramático do texto, quer através do recitativo, simples ou obbligato, quer através da ária. O diálogo, em que Serpina comunica a Uberto a sua intenção de casar com a personagem muda, Vespone, é um recitativo simples, acompanhado apenas pelo cravo. Quando Serpina sai, deixando Uberto sozinho, este fica a refletir sobre o que ela lhe disse. Quando as dúvidas o assaltam, a orquestra encarrega-se do acompanhante, tecendo comentários sempre que ele hesita, a princípio com acordes arpejados, depois mais nervosamente, com rápidos glissandos. Embora o recitativo comece termine em Dó maior, passando também no meio por esta tonalidade, a harmonia modula constantemente a Mib maior, Fá maior, Ré menor, Lá menor e Sol menor, mudando segundo o conteúdo do texto.
A ária é na forma da capo, mas nem a seção principal nem a seção intermédia desenvolvem um único motivo musical. Pelo contrário, há tantos motivos melódicos quantas a idéias e os estados de espírito do texto. O primeiro verso, composto num estilo repetitivo e soando como uma estrutura cadencial em Mib maior, repete-se três vezes com a mesma melodia, o que permite sublinha-la aos ouvidos do público, mas sugere também ao mesmo tempo a paralisia mental de Uberto. Uberto adota depois um tom lírico, perguntando a si próprio se será amor aquilo que sente. Mas assalta-o então um pensamento que lhe esfria os ímpetos - devia pensar em si próprio e nos interesses – e a melodia compõe-se agora de notas lentas, pensativas, prolongadas, em Fá menor. Um breve ritornello, que reafirma a tonalidade de Fá menor,conduz a uma seção que modula de novo a Mib maior, recapitulando a letra e a música dos seis íltimos versos. Mas o texto e a música do primeiro verso ficam de reserva até que, com a transformação da cadência perfeita em interrompida, se fazem ouvir quatro vezes, preparando o regresso do tema das negras dúvidas de Uberto. Um ritornello abreviado remata a parte da capo da ária. A seção intermédia utiliza alguns dos motivos musicais da primeira seção, em Dó menor e Sol menor, desenvolvendo material anterior, em vez de apresentar música contrastante.
ANEXO 3
Partitura do Recitativo Ah! Quanto mi sta male
VALFREDO BENEVENDES DA SILVA
é Licenciado em Letras pela UFAM
e é acadêmico do curso de Música pela UEA
BIBLIOGRAFIA
CANDÉ, Roland de. História Universal da Música. 2ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2001.
GROUT, Donald J; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. 5ª. Ed. Lisboa: Gradiva Publicações, 2007.
ALALEONA, Domingos. História da Música: desde a antiguidade até nossos dias. São Paulo, Editora Ricordi, 1984.
BENNETT, Roy. Uma breve história da Música. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1986.
3 comentários:
Interessante explanação sobre o iluminismo e suas influências na música. Muito bom!
Boa e esclarecedora!
Justo o que procurava sobre advogado de familia
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