segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Os Castrados no Século XVIII


A castração com intuito musical é uma prática que surgiu no século XVI e foi muito comum nos séculos XVII e XVIII. Ela consistia na retirada dos testículos através de uma pequena cirurgia em que se cortava a virilha, utilizando-se ou ópio (droga derivada da mamona) como anestésico ou a criança tinha suas veias carótidas apertadas até que viesse a desfalecer, e puxavam-se os testículos para fora, cortando-os. Era comum o uso de água gelada para estancar o sangue, porém, muitas crianças morreram de hemorragia durante cirurgias de castração (SILVA, Sara Jane da. Os Castrados, Portal do PPGMUS- UFBA).
Castravam-se crianças com idade entre sete e doze anos para que elas conservassem a extensão da voz infantil (cuja tessitura é quase idêntica a das vozes femininas de soprano, mezzo-soprano e contralto) apoiada em pulmões masculinos adultos, com emissão poderosa, ágil e penetrante (CARVALHO, 2002, pág. 69). Isso foi necessário porque em estados papais não era permitido que mulheres cantassem. “A voz dos castrados reúne a potência e a leveza; são capazes de sustentar num fio de voz longas notas sem respirar, emitir perfeitamente, tanto sons duma infinita suavidade, como terríveis sons de timbre metálico.” (CANDÉ, 1980, pág. 43).
As óperas foram muito importantes no século XVIII. A maioria das pessoas ia ao teatro para assistir às óperas. As óperas foram divididas em dois tipos: ópera séria e ópera cômica.  As óperas sérias tinham 3 atos, 6 personagens, abordavam temas morais e eram compostas para cantores castrados, eles faziam os papeis femininos e o papel do heroi, apenas o vilão era representado por um tenor.
O último lugar que proibiu a castração para propósito musical foi a Itália, em 1870. A proibição piorava as condições em que a castração era praticada. Pessoas comuns aventuravam-se em castrar crianças no fundo de suas casas em condições de higiene precárias, o que causou muitas mortes por infecção além das já citadas mortes por hemorragia. Apenas em 1902 o Papa Leão XIII proibiu o uso de castrados nos coros das igrejas.
Os castrados eram muitos requisitados e bem pagos. Isso fazia com que famílias pobres continuassem a arriscar a vida de suas crianças. Em alguns casos as crianças eram castradas na idade errada o que era de grande risco, pois se muito cedo, poderia--se descobrir mais tarde que a criança não possuía talentos musicais. Se muito tarde a voz já havia começado a mudar e não era nem de criança nem de adulto, por isso a importância de a castração ser feita entre os sete e doze anos de idade.
O cantor castrado mais famoso e bem pago, não só do século XVIII como de toda a história, foi             Carlo Maria Michelangelo Nicola Broschi (24.01.1705- 15.07.1782), conhecido pelo nome de Farinelli. Ao contrário da maioria dos castrados da época que eram abandonados ou de família pobre Farinelli era filho de um aristocrata menor, Salvatore, que também havia sido governador de Maratea e Cisternino, além de maestro.
Ricardo Broschi, irmão mais velho de Farinelli, estudou composição no Conservatório de S. Maria di Loreto, em Nápoles e compôs especialmente para o irmão durante longa data.
Farinelli foi castrado aos sete anos de idade e teve uma estréia precoce. Tendo como professor Nicolo Porpora (1686-1768), aos 15 anos cantou, como de costume, num papel feminino, em travesti, Angelica Medoro. Por coincidência o libretista da peça foi Pietro Metastasio, que veio a ser de grande importância na história por ter separado os assuntos sérios e cômicos da ópera. Ele acreditava que o teatro tinha o poder de mudar o indivíduo. Metastasio foi o libretista mais musicado da época, sendo primeiramente conhecido na Itália depois em Roma e Bolonha. Ele e Farinelli tornaram-se grandes amigos.
Farinelli é conhecido como um dos maiores cantores de todos os tempos e mesmo em seu tempo corriam boatos sobre seu talento e inteligência, pois até mesmo vendo diante de seus olhos as pessoas achavam difícil crer que alguém pudesse cantar como ele. Possuidor de grande agilidade e controle de respiração era capaz de sustentar uma nota por até um minuto.
O cantor foi também convidado para cantar para muitos reis, como o rei Luis XV, da França de quem recebeu como pagamento por seus serviços, o engenhoso salário de um quadro em alto relevo com diamantes e 500 livres. Cantou também em diversos países como Viena, Bolonha, Roma, Veneza, Inglaterra, Espanha e França.
Farinelli foi muito bem recebido na Inglaterra, porém a rivalidade entre os dois principais teatros, Covent Garden Opera House, dirigido por Handel (que já estava compondo menos óperas e mais oratórios em inglês) e o Noble’s Theatre pode ter causado muita pressão no cantor que acabou por aceitar um convite feito pelo rei da Espanha, Felipe V. Consta que o rei Felipe V sofria de depressão profunda e Farinelli foi convidado para fazer um teste na corte, em 1737. Ao ouvi-lo cantando o rei ficou maravilhado e o convidou para dedicar-se somente a ele. Farinelli aceitou o convite e por quase dez anos (1737-1746) foi o cantor oficial do rei Felipe V que sentia grande melhora ao ouvi-lo cantar (GRIFFITHS, 2009, pág. 114).
Em 1759 Farinelli volta para a Itália e estabelece-se em Bolonha onde se dedicou à espiritualidade, à música e a receber visitas ilustres. Morreu em 1782 e foi sepultado numa encosta em Bolonha, mas seu túmulo foi destruído por exércitos napoleônicos.
Além de Farinelli outros castrados também são lembrados hoje em dia como:
- Fillipo Finazzi (Gorlago, 7de julho de 1705 – Lombarde, 22 de abril de 1776). Era soprano e também obteve algum sucesso compondo óperas.
- Gaetano Majorano, conhecido por Caffarelli (Bitonto,1710- Nápoles, 1786). Soprano, um dos astros do bel canto, acompanhado por Farinelli e Gizziello.
- Giovanni Carestini (1705-1760) possuía uma extensão que o permitia cantar do contralto ao soprano. Foi convidado, em 1723, a cantar na coroação de Carlo VI em Praga. Foi um bom ator, dotado de viva imaginação. Tinha grande agilidade na execução de trinados e com o passar dos anos sua voz acabou por transformar-se num contralto rico e profundo tanto, que pode ser definido como o melhor castrado contralto de todos os tempos.
- Antonio Maria Bernachi (1685-1756).  Natural de Bologna, não possuía um timbre muito especial, mas uma técnica impecável. Não tinha uma boa interpretação porém, uma particularidade o diferenciava dos outros. Bernachi costumava inserir em sua cadência uma passagem imitando um instrumento como a flauta ou o oboé. Os estudos que elaborou contribuíram bastante para o aperfeiçoamento da arte do “bel canto”. Em sua morte, Farrinelli, seu amigo, organizou um funeral grande e honroso em sua homenagem.
- Gioacchino Gizziello (1714-Roma 1761). Aos oito anos foi enviado a Nápoles para estudar com Domenico, um ilustre cantor e compositor.
- Giovanni Battista Velluti (Corridonia, 1780-Sambruson, 1861). Velluti foi castrado por motivo de saúde. Ele foi o último dos cantores castrados a vir ao palco.
- Franscesco Bernardi, conhecido como Senesino (1680-1759). Filho de uma família nobre de Siena. Foi um dos primeiros a adotar o codinome de Sinesiano. Possuía uma voz de mezzo-soprano limitada na extensão, mas de ótima qualidade. Não se sabe com precisão a data de sua morte.
- Luigi Marchesi, conhecido como Marchesini (Milano, 1754-Indago, 1829). Iniciou os estudos em Modena como soprano. Pode ser considerado o Caffarelli do fim de 1700. Tinha um espírito prepotente e era muito bom no palco, assim como Caffarelli. Cantou pela última vez em Milão numa ópera de Mayr, depois disso decide retirar-se da vida pública morrendo em Indago em 1829.
- Alessandro Moreschi (Roma, 1858-1922). Foi o último castrado a abandonar a capela Sistina. Nasceu num período em que a castração estava decaindo o que tornava complicado encontrar um professor para seu tipo de voz. Em 1871 iniciou seus estudos e posteriormente estudou com Gaetano Capocci. Em 1883 entrou como solista no coral da Capela Sistina onde permaneceu como solista até 1898 e aos 40 anos tornou-se diretor do coral. Em 1913, aos 54 anos, aposentou-se. Alessandro Moreschi morreu sozinho e esquecido numa casa em Roma.
Há algumas gravações feitas de Moreschi em 1902. Apesar das limitações destas gravações elas são o único registro da singularidade destas vozes. Não podemos nos esquecer também de que Moreschi não recebeu o tratamento e o ensinamento dos castrados anteriores a ele visto que quando iniciou seu estudos a castração já era uma prática proibida e o que chegou a ele não foi exatamente tudo o que aprendeu o grande Farinelli e seu contemporâneos. Isso nos deixar saber que, na verdade, talvez nunca saibamos com exatidão como eram realmente as vozes desses cantores ilustres.



  Rebeca da Silva Leitão



Bibliografia

Carlo Broschi Known as Farineli, http://www.sonyclassics.com/farinelli/about/ffarinelli.html , Sony Picture Classics, Movies. Acesso em: http://www.sonyclassics.com/farinelli/about/ffarinell21/10/2011.
SILVA, Sara Jane da. Os Castrados, http://www2.ppgmus.ufba.br/forum/foruns_05/forum_01/trab_01/document_view, Portal do PPGMUS- UFBA. http://www.sonyclassics.com/farinelli/about/ffarinelli.html Acesso em: 19/10/2011.
Castrati, as vozes dos anjos.  http://www.portugalprotocolo.com/P_CULTURA_2.php, Portugal Protocolo, Cultura, artes e espetáculo. Acesso em: 20/10/2011.
An  Amazing Life: Carlo Broschi, Farinelli.  http://malesopranos.com/articles/farinelli-9/an-amazing-life-carlo-broschi-farinelli-89/, Male Sopranos e Altos, articles. Acesso em: 21/10/2011
I Castrati, http://www.haendel.it/, Haendel. It, Interpreti. Acesso em: 21/10/2011
CANDÉ, Roland de, O Convite à Música, tradução de Mário Mendonça Torres, Lisboa, editora Ltda, 1980.
CARVALHO, Virgilio Medeiros de, Canto Lírico: Breve Ensaio e Fundamentos, Rio de Janeiro, ANM, 2002. http://www.sonyclassics.com/farinelli/about/ffarinelli.html
GRIFFITHS, Paul, http://www.sonyclassics.com/farinelli/about/ffarinelli.html Breve Historia de La Musica Ocidental, São Paulo, editora Akal, 2009.  http://www.sonyclassics.com/farinelli/about/ffarinelli.htmlhttp://www.sonyclassics.com/farinelli/about/ffarinelli.html

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